Por que fico na Província? (1934) M. Heidegger


Na íngreme encosta de um grande vale no sul da Floresta Negra, numa elevação de 1150 metros, lá está uma pequena cabana de esqui. O chão plano mede 6x7 metros. O teto baixo cobre três cômodos: a cozinha que é também a sala de estar, um quarto e um quarto de estudo. Dispostas em grandes intervalos através da estreita base do vale e na encosta oposta igualmente íngreme, estão as fazendas com seus largos telhados. Mais acima na encosta, os prados e pastos levam a floresta com seus abetos escuros, velhos e muito altos. Sobre tudo lá se destaca um claro céu de verão, e em sua expansão radiante dois falcões deslizam em torno em largos círculos.
Este é meu mundo de trabalho – visto com os olhos de um observador: um hóspede ou alguém tirando férias de verão. Estritamente falando eu mesmo nunca observo a paisagem. Experiencio suas mudanças de hora em hora, dia e noite, no grande ir e vir das estações. A gravidade das montanhas e a dureza de sua rocha primitiva, o vagaroso e cauteloso crescimento dos abetos, o brilhante e simples esplendor dos prados em flor, o lançar-se do ribeiro da montanha na longa noite de outono, a simplicidade austera das terras planas cobertas de neve – tudo isto se move e flui e penetra a existência diária lá, e não em momentos forçados de uma imersão “estética” de empatia artificial, mas apenas quando uma existência própria está em trabalho. É este trabalho somente que abre espaço para a realidade que há nestas montanhas. O curso do trabalho permanece incorporado no que acontece na região.
Em uma noite profunda de inverno quando uma selvagem tempestade enfurece-se batendo em volta da cabana e oculta e cobre tudo, este é o momento perfeito para filosofia. Então as questões devem vir simples e essenciais. Trabalhar cada pensamento pode apenas ser duro e rigoroso. A luta para moldar algo na linguagem é como a resistência dos abetos contra a tempestade.
E este trabalho filosófico não toma seu curso como um estudo indiferente de algum excêntrico. Ele pertence bem ao meio do trabalho do camponês. Quando o jovem fazendeiro arrasta seu pesado trenó na encosta guiando-o cheio de troncos de faia e vai abaixo para a perigosa descida até a sua casa, quando o pastor, perdido em pensamentos e vagaroso em seus passos, dirige seu gado na encosta, quando o agricultor em seu barracão recebe as inúmeras telhas prontas para seu telhado; meu trabalho é do mesmo tipo. Ele é intimamente arraigado e referenciado à vida dos camponeses.

Um morador da cidade pensa que está “entre o povo” tão logo ele condescende ter tido uma longa conversa com um camponês. Mas no final de tarde durante um internvalo no trabalho, quando sento com os camponeses perto do fogo ou numa mesa no “Lord’s Corner”, nós, na maior parte das vezes, não dizemos absolutamente nada. Fumamos nossos cachimbos em silêncio. De vez em quando alguém diz que o corte de madeira na floresta está terminando, que uma marta invadiu o galinheiro na noite anterior, que uma das vacas provavelmente vai dar a luz na manhã seguinte, que o tio de alguém sofreu um derrame, que o tempo vai “virar”. A íntima relação do meu trabalho com a Floresta Negra e seu povo vem de séculos atrás, na insubstituível raíz do solo suabo-alemão.
No máximo, um morador da cidade fica “estimulado” pela chamada “estada no campo”. Mas todo meu trabalho é sustentado e guiado pelo mundo dessas montanhas e seu povo. Ultimamente de tempos em tempos, meu trabalho lá é interrompido por longos intervalos para dar conferências, viagens para palestrar, comitês, reuniões, e meu trabalho de ensino aqui em Freiburg. Mas tão logo eu volte pra lá, mesmo nas primeiras horas da estada na cabana, todo o mundo de questões que estavam anteriormente lá antes de eu sair força-se sobre mim, e da mesma forma que o deixei. Eu simplesmente sou transportado para o ritmo do trabalho, e num sentido fundamental não estou de forma alguma no comando de sua lei oculta. As pessoas na cidade sempre perguntam-se se alguém se sente sozinho nas montanhas entre os camponeses por tanto tempo e períodos tão monótonos de tempo. Mas não é um“estar sozinho” – é a solidão. Em grandes cidades pode-se facilmente ser tão sozinho como em nenhum outro lugar. Mas nunca se pode estar em solidão lá. A solidão tem um poder original e peculiar, não de isolar-nos, mas de projetar todo nosso existir para fora, na vasta proximidade da presença de todas as coisas.

No mundo público pessoas tornam-se celebridades da noite para o dia, através de jornais e revistas. Isto sempre permanece o caminho mais certo para ter as intencões mais próprias de alguém mal interpretadas ou rapidamente esquecidas. Em constraste, a memória do campones tem sua certa e simples fidelidade que nunca se esquece. Recenetemente uma velha camponesa  estava chegando perto da morte. Ela gostava de conversar comigo frequentemente, e ela me contou muitas histórias da vila. Na sua língua rústica, cheia de imagens, ela ainda preservava muitas das antigas palavras e vários ditos que se tornaram ininteligíveis para a juventude da vila hoje em dia e por isso estão perdidas para a linguagem falada. Muitas vezes no ano passado, fiquei só na cabana por semanas a fio, e esta camponesa com seus 83 anos ainda vinha subindo a encosta para visitar-me. Ela queria de tempos em tempos, como ela colocava, ver se eu ainda estava lá ou se alguém tinha me roubado de surpresa. Ela passou a noite de sua morte numa conversa com sua família. Apenas uma hora e meia antes do fim, ela mandou saudações ao “Professor”. Uma tal memória vale incomparávelmente mais do que o mais astuto relato de qualquer jornal internacional sobre minha alegada filosofia.

O mundo da cidade corre o risco de cair num erro destrutivo. Uma moderna impertinência muito barulhenta e muito ativa frequentemente passa por lá, e é a preocupação para o mundo e a existencia do camponês. Mas isto vai exatamente ao contrário da única coisa que agora precisa ser feita, a saber, o manter-se à distância da vida do camponês, deixar sua existência mais do que nunca à sua própria lei, manter as mãos fora deles para que eles não sejam arrastados para a desonestidade da conversa literata sobre “personagens populares” e “raízes no solo”. O camponês não precisa e não quer esta oficialidade. O que ele precisa e quer é a quieta reserva, por respeito à sua própria forma de ser e sua independência. Mas hoje em dia, muitas pessoas da cidade, do tipo que “sabe de tudo” e também todos os esquiadores, frequentemente se comportam na vila ou na casa de um agricultor da mesma forma como quando eles “se divertem” nos seus centros de recreação na cidade. Tais ocorrências  destroem  mais em uma noite do que o que séculos de ensino escolar sobre “folclore” poderiam de longe promover.

Vamos parar com toda essa condescendência familiar e falsa preocupação por “personagens populares” e vamos aprender a levar a sério a rústica e simples existência que há lá. Só assim ela falará conosco uma outra vez.

Recentemente recebi um segundo convite pra ensinar na Universidade de Berlin. Naquela ocasião eu deixei Freiburg e me retirei para a cabana. Escutei o que as montanhas e a floresta e as terras estavam dizendo, e fui ver um velho amigo meu, um agricultor de 75 anos. Ele leu sobre o convite de Berlin nos jornais. O que ele diria? Vagarosamente ele fixou o firme olhar de seus claros olhos nos meus, e mantendo sua boca levemente fechada, ele atenciosamente pôs sua mão fiel no meu ombro. Nunca tão pouco ele balançou a cabeça. E isto quis dizer: não absolutamente!




(Tradução: Manuela S.)